Quetiapina

Durante minhas andanças pela cidade, conheci um personagem interessante com o qual eu não gostaria de manter um diálogo no ônibus. Segue um trecho do conto Quetiapina. Para entendê-lo melhor, talvez seja interessante ler isso e isso.


Tomei o último copo de Jhonnie Walker que restara da minha reserva. Há dois meses, depois de me submeter a tratamento psiquiátrico pelos últimos três anos, decidi que buscaria uma saída natural para os problemas que só meu psiquiatra enxergava. Toda noite, antes de dormir, acendia um cigarrinho da erva maldita que provocava em mim o mesmo efeito de um comprimido de Lexotan. Ouvi dizer que cura até câncer -- provavelmente, não aqueles que tomam o pulmão. Me abstendo de maus hábitos durante todo o período que passei por acompanhamento do tal médico da cabeça, resolvi me recompensar comprando uma garrafa de Red Label. Que é um homem se não puder ter um pouco de prazer na vida?
    Resolvi que faria uma boa ação no dia seguinte, logo pela manhã: doaria os psicotrópicos para alguém que estivesse realmente necessitado. Não é todo mundo que pode desembolsar mil e seiscentos reais por mês por sete caixas de quetiapina. Eu mesmo só dispunha dos remédios por ter conseguido que me fossem fornecidos pelo Estado. Mas uma vez que encontrei serenidade em meus próprios meios para a cura, não havia mais necessidade de ter uma verdadeira farmácia no armário da cozinha, já que bastava uma ligação para que me fosse entregue algumas gramas da mais pura erva. Os remédios para loucos deveriam ser dados para os loucos. Não havia porque guardá-los se eles não tivessem o destino de ser enfiados goela abaixo mesmo que fosse para obter efeito placebo.
    Dormi com minha nobre intenção na cabeça, determinado a acordar cedo. A viagem de ônibus do centro até a Cidade Tiradentes seria longa, mas depois de entregues os remédios à clínica que outrora quase me internei, e que continuava atendendo pessoas necessitadas que não encontram tratamento para suas psicopatologias na maioria dos hospitais públicos, tinha a certeza de que sentiria uma sensação de alívio e de missão cumprida. Se sou incapaz de escrever um livro que console estes pobres insanos, pelo menos daria uma contribuição para que eles pudessem conviver novamente nos seus meios sociais até perceberem que doentes de verdade não são eles, nem eu, mas a própria sociedade.


    Tomei um café na padaria tomando cuidado de não deixar ser visto o conteúdo da minha sacola. Quanta quetiapina deveria ter nela? Três mil, quatro mil reais? Duvido que se fosse roubado o ladrão conseguiria trocar esses comprimidos por uma pedra de crack. No máximo, acabaria tendo uma overdose do próprio psicotrópico. Talvez fosse mesmo melhor que eu fosse assaltado a ter que bater na porta da velha clínica, com o risco de encontrar meu psiquiatra barbudo que iria tentar me fazer retomar o tratamento, dizendo que abandoná-lo faz parte de um quadro de depressão ou qualquer outra baboseira clínica que mantenha as pessoas reféns de eternas sessões de psicoterapia.
    Morar no centro de São Paulo é incrível, quando em todas as avenidas pode-se deslocar para qualquer ponto da cidade pagando a tarifa de dois e trinta e cinco do ônibus. Extende-se o braço durante 30 segundos e logo já se está a caminho até mesmo de um lugar longíquo como a Cidade Tiradentes. É claro que isso demandava certa estratégia: não é inteligente pegar qualquer ônibus as oito da manhã, a não ser que a necessidade o obrigue. Também é preciso se programar para voltar antes das 17h, para não ser forçado a ser tratado como uma fatia carne de um churrasco grego abarrotado prestes a ser mordido por alguém que tenha um estômago tão corajoso quanto o de um avestruz.
    Para meu azar, o microônibus com destino a Barro Branco, que passa próximo a Av. dos Metalúrgicos -- onde situa-se a maldita clínica, estava lotado. Mas como um lampejo de sorte ou de interferência divina, um assento continuava livre, mesmo que as pessoas continuassem se espremendo à sua volta, talvez por falta de calor humano naquele dia chuvoso na cidade que, apesar de ser a mais populosa do país, é também a metrópole da solidão. Viver em São Paulo evidencia que pode-se estar só mesmo rodeado de 20 milhões de pessoas. A verdadeira solidão não vem de fora, mas de dentro de um coração que não consegue acalentar-se com nada que outras pessoas tenham a oferecer.
    Tomei o assento como se fosse uma lagoa de água doce e cristalina no deserto do Saara. Uma idosa que certamente teria problemas cardíacos por esbanjar uma massa corporal que certamente exigia que seu débil coração trabalhasse mais que o triplo do que deveria trabalhar segurava uma sacola e parecia ter acabado de vir da feira. A coroa de um abacaxi que imagino que ela não conseguiria descascar espetava-me quase à altura do rosto, mas não tive coragem de interromper esse contato já que certamente ele terminaria com a necessidade de levantar e ceder o assento para a velha. Não estava disposto a ser cavalheiro, não quando precisava passar pelo menos 2 horas indo de um ponto a outro da cidade.
    Percebi um perfume adocicado e barato vindo da mulher ao meu lado. Ao me sentar, vi que dividiria o espaço com uma pessoa de cabelos longos e loiros, mas não reparei em detalhes que me fariam perceber se valia ou não à pena fantasiar um possível contato no ônibus que terminaria de maneira tórrida na minha velha cama de casal. Há muito já tinha parado de idealizar situações que nunca aconteceriam. A sacola nos meus pés balançava tanto quanto o veículo que parecia não dispor de amortecedores, que hora voava por ruelas que pareciam ter sido construídas para carroças, hora parava em semáforos ou em congestionamentos que só tendiam a piorar com a chuva.
    Esqueci o celular. Não que estivesse esperando alguma ligação, até porque, ninguém tinha como hobby jogar conversa fora com um quarentão calvo que levava a vida com amargura e ceticismo. Uma pane no pequeno aparelho também tinha feito com que eu perdesse a agenda, sendo reservada a ele a mesma função para a qual serviria qualquer relógio de pulso. De relance, percebi por baixo da manga fina e branca da mulher que dividia comigo o banco apertado a silhueta do que poderia ser um desses artefatos que marcam as horas.
    -- Por gentileza, sabe que horas são? -- preocupado com o horário em que o hospital fecharia, perguntei.
    -- Meu relógio não está funcionando, parou há alguns dias -- ela respondeu.
    Para que raios alguém manteria no pulso um relógio quebrado? Seria algum fetiche ou a falta de uma pulseira? Poderia ser preguiça de desafivelar aquelas desconfortáveis presilhas de metal?
    -- Eu nunca tiro o relógio, nem para dormir -- ela arrematou, como que respondendo minhas indagações que não tinha tido coragem de verbalizar.
    Mesmo assim, não me parecia muito coerente. Eu mesmo já tinha usado relógio, até comprar o meu primeiro celular. Não costumava tirá-lo muito, mas com certeza se ele me deixasse na mão deixando de fazer aquilo para o qual ele tinha sido feito, eu teria arranjado-lhe uma morte digna à marretadas ou lançando-o de meu apartamento no 25º andar. Tenho certeza de que me deleitaria vendo o final merecido de um objeto que, quebrado, só serviria para me fazer arrepender-se de ter gastado algum dinheiro para obtê-lo.
    -- Não sou muito diferente, o celular que esqueci só mostra as horas mas não faz ligações -- respondi, fingindo ser simpático.
    Ela sorriu. Não sei como percebi o sorriso por trás do cabelo levemente embaraçado, mas nessa hora atentei-me de que suas feições pareciam ter sido desenhadas por aqueles artistas que vendiam quadros desenhados na hora na Praça da Sé. Ela era bonita, e parecia ser simpática. Ainda assim, achei que carregando uma sacola-bomba cheia de drogas lícitas que alteram o funcionamento do cérebro não seria uma boa hora para puxar papo com uma estranha.
    -- São remédios? -- mais uma vez, ela antecipou meus pensamentos.
    -- São. Estou fazendo uma doação. -- não precisava explicar detalhes.
    -- Trabalha com caridade?
    -- Não, só um ato de cavalheirismo.
    -- Você não foi cavalheiro com a velha que estava quase colocando o abacaxi no seu colo!
    Só então percebi que não estava mais sendo espetado pela fruta metida a rei. A velhinha havia sumido, provavelmente descido no ponto próximo ao metrô Tatuapé que via de regra funciona quase que como uma válvula de descarga de um banheiro, esvaziando o ônibus e tornando a viagem palatável. Alegrei-me durante alguns instantes, até que notei a provocação na última frase da passageira do meu lado. Não tinha como mudar de lugar, então resolvi ficar calado e não dar margem para que a conversa seguisse adiante.
    -- Meu ex-marido tomava remédios como esse -- ela tentou continuar.
    -- Que bom -- falei com esperança de que isso encerraria o assunto.
    -- Eles não são baratos.
    -- É, não são.
    No geral, eu pararia por aí ou mudaria de lugar. Mas olhei atentamente para ela e percebi que talvez eu estivesse realmente diante daquelas sinucas de bico de Deus, que se existe certamente é um cara bastante sarcástico. Só assim, me colocaria ao lado de uma mulher linda que tentava estabelecer algum contato comigo, sabe-se lá com quais intenções, mas que era altamente intrusiva em suas intervenções. Resolvi fingir-me de simpático mais uma vez.
    -- O lugar para onde vou doar oferece tratamentos gratuítos para quem não pode pagar.
    -- Ele pode. Se gastar o dinheiro em remédio, não vai gastar em cachaça.
    -- Não é bom misturar o álcool com psicotrópicos -- admiti o conteúdo da sacola.
    -- Na época em que ele tinha um fígado isso seria preocupante.
    É claro que uma pessoa não vive sem fígado. O álcool debilita muito a sua função, mas quando ele para de funcionar, o próximo passo é apresentar-se ao velho Pedrão para admitir os pecados e ter a entrada liberada ou não para o paraíso. Nesse momento, atentei-me que poderia estar falando com uma viúva. Na Índia, diz-se que isso não é um bom presságio, e nos templos dedicados à deusa das viúvas não se pode entrar quando se é casado, pois dizem que isso trás a morte certa para o marido que acompanha. Os judeus antigos consideravam as viúvas um símbolo de degradação. Eu, em particular, já tinha parado de acreditar em religião há muito tempo, quando os fatos que apresentavam-se em minha vida tornavam evidentes para mim de que misericórdia definitivamente não é um atributo de Deus.
    -- Me separei a tempo de não vê-lo se acabar com a cachaça e remédios.
    -- Você é separada então? -- resolvi que uma inferência intrusiva seria o troco adequado para a inconveniência da mulher.
    -- Sim. Não. Quase...
    Tudo tem limites. Não era porquê ela aparentemente se divertia despindo-me com a fala que eu iria me empenhar em fazer o mesmo. Certamente era muito mais divertido despí-la em minha mente, imaginando que uma conversa no ônibus poderia levar a uma trepada fenomenal com uma estranha sem ter que perguntar o nome dela. Acho que como no mecanismo do deja-vu, por um instante minha mente confundiu-se e pareceu que eu a conhecia de algum lugar.
    -- Mora no Barro Branco? -- perguntei, para mudar de assunto.
    -- Pirituba. Estou indo para a Zona Leste para fazer uma visita.
    -- Ao seu ex-marido? -- ri.
    -- Não bobo. Não o vejo há três anos.
    Três anos. Uma vida se constrói em três anos. Também é possível destruir uma nesse tempo. Nesse intervalo, consegui deixar de ser o principal administrador de uma multinacional para viver da rentabilidade que gera meu FGTS num fundo pré-fixado. Também parei de receber direitos autorais dos dois livros que escrevi por não ter insistido na publicação de uma nova tiragem. No tempo que uma criança leva para aprender a falar e andar como bípede, eu consegui destruir uma carreira de 25 sofridos anos de trabalho. Ao menos, não tinha que me preocupar com dinheiro.
    -- Três anos é muita coisa. Ele pode até ter se curado.
    -- Duvido. Ele sempre foi um bêbado, não iria mudar por minha causa.
    -- As pessoas fazem loucuras por causa de mulheres -- fitei-a nos olhos -- como você.
    Sorriso. Silêncio.
    Parece que meu nível de intromissão superou o dela. Depois da minha assertiva digna de um balcão de bar no final de noite, ela abaixou a cabeça suavemente, como que tentando se esconder atrás das mechas loiras que pareciam ter sido clareadas para dar algum destaque à franja. Não consegui identificar se ela ruborizou-se, mas existia essa possibilidade. Nesse momento, tive certeza de que estava ficando interessado em conseguir seu telefone, quem sabe para ser bem sucedido em uma próxima investida. Mas, sem celular, como poderia guardá-lo?
    -- Se quiser, posso te ligar outro dia para conversarmos melhor sobre isso -- investi.
    -- Não vai me deixar esperando seu telefonema para sempre?
    Quem não tem cão, caça com gato. No meu caso, não dispunha da memória feita de silício encouraçada por uma carcaça plástica da Motorola, mas papel era o que não me faltava numa sacola cheia de bulas de remédio. Com a mão, num movimento rápido, encontrei uma das caixas abertas e saquei uma bula de quetiapina, que agora teria uma utilidade muito maior do que as letras miúdas poderiam lhe proporcionar.
    -- Você tem uma caneta?
    -- Tenho na bolsa.
    Bolsas de mulheres são verdadeiras lojas de conveniência. Onde mais poderia se encontrar cigarros, uma lata de pringles, um pacote de absorvente e uma caneta, tudo no mesmo lugar? A estranha abriu o zíper e por alguns instantes sua mão sumiu dentre as camadas de falso couro que poderiam guardar de tudo. Revirou seu conteúdo por uma eternidade, até que sacou uma pequena lapiseira, daquelas que se ganha de brinde em farmácias, bancos ou supermercados. Percebi que onde eu tinha visto um relógio, uma mancha vermelha começava a se formar. Parecia sangue.
    -- Acho que você se machucou. É melhor descermos no próximo ponto, em frente ao hospital de Itaquera.
    -- Você me machucou!
    Aterrorizado, olhei-a nos olhos. Eu a conhecia: Isabel. Cursava farmácia na USP depois de ter concluído o curso de enfermagem e trabalhado na área durante algum tempo. Tinha os olhos azuis mais bonitos que vi em toda a minha vida e dos quais era impossível se esquecer. Separava as roupas de cama por cor, conversava sozinha durante horas, achava que sempre estava sendo seguida. Me satisfez na cama como nenhuma mulher outrora conseguiu. Era casada. Comigo. Até dar cabo da própria vida há três anos, usando um bisturi para cortar os pulsos e cometer uma espécie de harakiri com uma incisão em sua própria jugular. O cobrador estava estupefato. O ônibus estava vazio. Durante horas, mantive um diálogo olhando para o meu próprio reflexo no vidro borrifado pela água da chuva. Evidentemente sem a caneta nas mãos, detive minha atenção no único objeto real que apresentava-se na minha frente: a bula.
    Suas palavras confirmaram os discursos inflamados de meu velho psiquiatra, e praticamente saltaram sobre meus olhos: a interrupção do tratamento com fumarato de quetiapina pode piorar sintomas de depressão, alucinações, mudanças de comportamento, pensamentos estranhos e assustadores. A interação com álcool pode levar a óbito. Não interrompa o tratamento sem comunicar seu médico.

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