A Aflição de Xavier



Xavier acordou cedo. 6h32 da manhã. Não era costume de Xavier acordar cedo: na verdade, a impressão que teve foi que já era a hora certa de despertar. Não foi. Naquele dia, só deveria acordar às 8h30 para fazer uma ligação e decidir entre dois compromissos: um indispensável. O outro, impulsivo.
Uma transa. Um final de semana. Foi o suficiente para despertar em Xavier um sentimento tão intenso que brotou nele um sentimento de impulsividade e ansiedade que só sentira há anos atrás, e prometeu para si mesmo que nunca mais se deixaria sentir. Calejado pela vida, já um pouco mais maduro que aos seus 25, percebeu que os atos impulsivos levavam-no na maioria das vezes a situações que, a médio prazo, lhe eram prejudiciais -- e aos outros. Uma vez disseram-lhe que, com uma certa casa de seu mapa astral, Júpiter influia sua sorte fazendo-lhe boa na maioria das vezes e que ele deveria jogar na loteria. Jogava, mas no máximo acertava três números. Três números. Se fossem quatro, seria uma quadra, e ganharia o prêmio mínimo. Mas em todos os jogos, até num bingo de igreja, ele nunca ganhou nada. Achou aquele negocio de astrologia balela -- boa sorte o caralho, estava mesmo é fudido.

Seu outro compromisso era inadiável e importante: poderia fechar um negócio que lhe resolveria a vida financeira nos próximos meses. É isso: Xavier vivia fudido, fruto de sua impulsividade e inconsequência dos anos anteriores. Tinha marcado com a cliente no dia anterior às 10 da manhã. Desmarcar em cima da hora poderia funcionar, mas também faria com que ficasse mais difícil reagendar essa reunião. “Foda-se mais uma vez”, ele pensou. “Estou no inferno, vou abraçar o capeta”. Sete horas da manhã. A essa altura já tinha fumado dois cigarros e preparado um café instantâneo, e enquanto isso, olhou para os copos na pia -- deveria tê-los lavado na noite anterior, e ouviu o barulho vindo da janela do quarto que prenunciava chuva. Não satisfeito, tão logo fez o café, foi para o quarto e viu que estava errado: a manhã estava ensolarada e a árvore em frente à janela balançava com a brisa vinda do ir e vir dos ônibus na Rua Vergueiro. Achava que conhecia os sons da natureza e que poderia prever o tempo de São Paulo, já que a conhecia em todos os seus nuances. Percebeu que, na verdade, era tudo prepotência de sua mente.
Sonhou com a ligação que deveria fazer entre às 8h30 e 9h. Se ela não atendesse às 9h resolveria a tempo se iria para a reunião. Já se ela atendesse, o improvável poderia acontecer. É isso, resolveu jogar ao acaso. “Deus não joga dados”, lembrou-se de Einstein. “Eu jogo”. “Não sou Deus afinal!”. Seu sonho foi vívido, tanto que acordou para ver se o celular estava mesmo em suas mãos -- e não estava. Nele, ligou para ela e anunciou que estava indo encontrá-la -- sim, cedo assim -- e que precisava vê-la. Mesmo que, ele pensou, no fundo no fundo foi tudo uma foda. Tomou o restante do café em um só gole e foi para a cozinha fumar mais um cigarro e colocar a água no microondas para fazer outro Nescafé. Nem lavou a xícara. Do contrário, lavou todos os copos enquanto o cigarro queimava no cinzeiro e as moléculas de água agitadas pelo microondas levavam-na ao ponto ideal para diluir o pó do café quando escutasse a campainha do microondas.
Levou a xícara para a sala e ficou encarando a árvore balançar. Passaram-se vinte minutos entre lavar os copos, preparar o café e fumar um cigarro. “Vinte minutos”, pensou com raiva, mas em seguida se acalmou. Tinha pensado que passariam dez, e com isso sua ansiedade o tomou enquanto estava na cozinha. O ato impulsivo tinha sido premeditado na noite anterior, depois que ligou para ela quase à meia noite para não deixar que a decisão fosse tomada só no dia seguinte. Assim, saberia previamente qual o compromisso que faria e não se deixaria entregar ao impulso. Só à ansiedade, o que era inevitável. Enquanto contemplava a árvore lembrou-se que teria de ter preparado no dia anterior uma apresentação no Powerpoint para levá-la à reunião. “Puta que o pariu!”. A coisa toda dependeria do gogó, e a venda dependeria exclusivamente de sua competência. Agora era tarde: um chefe tinha-no dito que quando um problema não tem solução, não é um problema, e ele se deixava nortear por isso desde então. Sabia que se preparasse a toque de caixa uma apresentação a coisa toda poderia ficar uma merda e confiava em seu discurso.
Lembrou-se do sonho: nele, ligou para ela e ela atendeu sonolenta. Criticou-lhe por acordá-la tão cedo, e como ele a conhecia há tempos, lembrou-se que, se não fosse a transa, ela não teria reclamado. É, algo tinha mudado para ela também. Anunciou para ela o que faria, e antes da garota responder-lhe, acordou percebendo que estava segurando o travesseiro como se fosse o celular. Sentado confortavelmente no puff da sala, resolveu fumar mais um cigarro, e reprendeu-se em seguida pelo fumo compulsivo. “Porra, ao invés de ficar fumando, deveria é ter tomado um Rivotril”. Mas sabia que isso poderia lhe fazer dormir de novo e, mesmo com o despertador, poderia acordar atrasado tanto para o ato impulsivo, quanto para a reunião.
Degustou o café durante o máximo de tempo que conseguiu enquanto fumava. Alternava entre um gole e duas tragadas, com baforadas lentas. Há muito tempo atrás praticava Yoga e sabia que uma meditação poderia resolver tudo isso: ao invés de inalar a fumaça cancerígena, deixaria o ar entrar e sair dos seus pulmões e reduziria a sua ansiedade. Lembrou-se desse tempo e tentou percorrer a sua memória para perceber em que ponto tinha decidido deixar o caminho sereno e entregar-se aos psicotrópicos para se controlar. Não encontrou. Amaldiçoou-se por ter acordado tão cedo. Seus planos iniciais -- tal qual a programação do despertador, era acordar às 8h30, tomar o seu café na máxima tranquilidade que conseguisse e, às nove em ponto, ligar para ela. Resolveu aconchegar-se no puff e contemplar o movimento da árvore: já eram oito da manhã.
Sentiu-se aliviado. Quando menos percebeu já estava com o cigarro aceso sem que o café tivesse terminado. “Foda-se, se eu morrer de câncer de pulmão ou de laringe vou acabar com essa vida medíocre antes dos cinquenta anos e nunca mais passarei por essa ou outras situações de aflito”. Terminou o cigarro e o café e foi tomar um banho. Achou que a água caindo em seu corpo o deixaria mais calmo e ajudaria a passar o tempo. Não deu certo. O banho durou só 10 minutos. Vestir-se, mais cinco. Tinha uns trocados no bolso e resolveu descer para a padaria tomar um café -- o que para ele significava não só tomar o excitante mas pedir também um pão na chapa.
Viu o balconista e percebeu que olhar seu movimento entre a chapa e o balcão poderia entretê-lo durante a os 45 minutos que restavam entre a ligação decisiva. Se não bastasse, sabia que o tempo entre subir de volta ao apartamento e colocar o terno preencheriam o espaço temporal necessário e, afinal, chegariam as 9 horas. Quando seu pedido foi atendido percebeu que na televisão à pregada na parede em sua frente passava o “Bom dia São Paulo” ou algum outro noticiário qualquer. Assistiu sem qualquer atenção e, mesmo assim, os minutos passaram. 8h45 da manhã. Tempo ideal para colocar o terno, fazer a (mal)dita ligação e deixar o acaso decidir entre os dois compromissos.
Enrolou-se com o nó da gravata e isso nunca aconteceu antes, exceto quando resolvia dar um nó windsor quando vestia camisas de gola larga. Olhou o relógio do celular aliviado e percebeu que eram 9h15: para a reunião, chegaria atrasado, mas sabia que o atraso era um costume brasileiro e isso não interferiria na negociação. Já para o outro compromisso, ligar mais tarde era benéfico, a chance de acordá-la seria maior, pois sabia que dificilmente ela acordava cedo. Isso reduzia a possibilidade de conseguir realizar seu ato impulsivo -- mas o ato era impulsivo mesmo, então se desse errado, foda-se, mas dificilmente tentaria de novo alguma coisa com ela. Ao bem na verdade, estava decidido a nunca mais ligar para ela se ela não atendesse àquela ligação.
Finalmente tomou o celular e discou. Ela atendeu sonolenta.
-- Isso é hora de ligar Xavier.
-- Desculpe -- nos velhos tempos ele nunca pediria desculpas -- mas precisava falar com você agora. Está em casa?
-- Claro que estou.
-- Na cama.
-- Óbvio. Que horas são?
-- Quase dez -- mentiu por sarcasmo.
-- Então, eu só acordo ao meio dia!
-- Mesmo assim. Decidi tomar um café da manhã com você na padaria de sua casa.
-- Você é louco?
-- Você me conhece. Já que você diz que não tem tempo, resolvi criar um tempo para te encontrar -- em seguida ele pensou, “estou fazendo isso por causa de uma boa foda, puta merda”.
Surpresa e quase por um instinto, ela respondeu:
-- Tá bom, pode vir. Não precisa demorar nem vir rápido, assim eu posso dormir mais um pouco, mas assim que você ligar eu desço.
Já estava de terno e ligou para a cliente:
-- Dona Marta, infelizmente tive um imprevisto e terei de ir até a agência do Butantã para resolvê-lo. Podemos remarcar a reunião para amanhã no mesmo horário?
-- Claro, sem problemas. Hoje ficaria apertado mesmo para mim e não teria muito tempo para ficar.
-- Ótimo! Então agendamos para amanhã, quinta-feira dia dez, às dez da manhã -- achou engraçada a combinação entre os números.
-- Tá certo então. Um abraço! Obrigada por ligar.
-- Outro.
Sentiu pela primeira vez no dia uma corrente de alívio percorrer seu corpo. Tanto o impulso quanto o ato pensado tinham dado certo. Considerou um prenúncio de que sabe-se lá o que faria com ela na padaria daria certo. Com essa sensação procurou a sua chave por algum tempo e, de posse dela, dirigiu-se para a sala.
Acordou pontualmente às 9 horas da manhã. Tinha cochilado no puff, deixado meia xícara de café esfriando e o cigarro estava inteiro queimado no cinzeiro. Não sabia se ficava puto ou feliz por ter conseguido passar o tempo ideal para ou chegar atrasado no compromisso ou deixar ao acaso que o encontro com a garota se realizasse. Ainda teria de colocar o terno para preparar-se para o resultado do jogo de dados. Pegou o celular com uma sensação pessimista de que ela não atenderia -- as chances eram mínimas afinal. Resolveu mandar um sms avisando que ligaria cedo -- talvez o barulho já a despertasse e a deixasse menos surpresa ao receber a ligação.
Ligou. Um toque. Dois toques. Três toques. Quatro toques. Cinco toques. Caixa postal. Tentaria de novo? “Nem fudendo!”. Ao contrário, ligou para Dona Marta e disse que chegaria uns quinze minutos atrasado para a reunião.
-- Tudo bem, com o congestionamento não chegaria na hora.
Decepcionado, colocou o terno e saiu de casa. Agora seu único desafio seria a negociação -- e nunca mais ligar para ela.

1 comentários:

abraao manoel disse...

Muito bom o seu blog você escreve bem. Gostei da estória do Xavier você faz o leitor entrar na história. Parabéns Será que ele não ligou para ela mesmo?
Visite meu blog: http://descansandoamente.blogspot.com/2011/11/voce-conhece-o-clipe-voce-ama-o-seu.html

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