A Aflição de Xavier (revisado)


Xavier acordou cedo. 6h32 da manhã. Não era costume de Xavier acordar cedo: na verdade, a impressão que teve foi que já era a hora certa de despertar. Não foi. Naquele dia, só deveria acordar às 8h30 para fazer uma ligação e decidir entre dois compromissos: um indispensável. O outro, impulsivo. Seria a volta de sua insônia que manifestou-se durante seis meses antes pela dificuldade de dormir, depois por adiantar seu despertar, que controlou através de psicotrópicos e meditação -- e pasme, a segunda foi a que a fez curar!
Não. Na realidade, não existe maior perturbador do sono que a ansiedade. Na batalha entre os pensamentos persistentes e a necessidade do sono profundo nenhum dos dois vence: acaba-se por entrar em um sono supérfulo, no limiar da vigília, e raras vezes produz-se nesse período alguns sonhos -- via de regra, sonhos lúcidos. Basta desejar, ou não, e o cérebro se faz desperto novamente, em um total descompasso entre o relógio biológico e o tempo regido pelo movimento de rotação da Terra.
Uma transa. Um final de semana. Horas de sexo só interrompidas pela necessidade de água e alimento, coisa que só acontece quando há a perfeita comunhão dos corpos -- não aquela pregada pelo Padre, mas a que se sente quando o contato da pele e a pele faz sentir. Experiência rara que só passaria incólume pelo Mr. Spock. Já em Xavier brotou um sentimento tão intenso que parecia queimar seu corpo só ao lembrar da experiência. O tempo realmente é relativo: aquele final de semana durou uma vida.

Calejado pela vida e (considerava ele) muito mais maduro que aos seus 25 anos, sentia-se de novo um adolescente. Aquela ansiedade que o tomava ele já experienciou outrora, várias vezes, mas invariavelmente teve como produto marcas que carregava até hoje. Prometeu para si mesmo que nunca mais se sentiria assim -- ah, que ingenuidade, como se pudéssemos controlar os nossos sentimentos! Aquele que diz que o faz é um imenso mentiroso ou quer vender auto-ajuda para quem acha que não pode se ajudar.

Uma vez disseram-lhe que em uma certa casa de seu mapa astral, Júpiter trazia-lhe boa sorte na maioria das situações e que ele deveria jogar na loteria. Jogava, mas no máximo acertava três números. Três números. Se fossem quatro, seria uma quadra, e ganharia o prêmio mínimo. Mas em todos os jogos, até num bingo de igreja, ele nunca ganhou nada. Achou aquele negocio de astrologia balela -- boa sorte o caralho, estava mesmo é fudido. Até seu pai que não precisava de grana como ele já tinha ganhado mais de duas quadras da mega-sena -- não mais de cem reais, é fato.
Taí, duas coisas que importavam muito a Xavier mas de forma bem distintas: mulheres e dinheiro. Com as primeiras, sentia-se extasiado. Sem a segunda, sentia-se extremamente deprimido. O primeiro compromisso que o afligia era justamente para evitar a depressão e, porque não dizer, deixar-lhe tão extasiado quanto o segundo. Já o outro compromisso, decidido pelo impulso que para ele era tão intenso quanto a razão -- senão mais (costumava dizer que tinha um Superego e um SuperID), poderia lhe trazer o êxtase ou a depressão. É, no final das contas, ambos se igualavam. Ambos lhe aturdiam da mesma forma. Por isso que, já que no plano da razão os compromissos tinham igual importância, restava à parte mais primitiva do cérebro -- aquela, a primeira a formar-se no feto, a mesma que nos iguala a todos os primatas -- decidir por um ou por outro.
Foi tomado pelo impulso e atribuiu a prioridade ao segundo compromisso. Conseguiu racionalizar a coisa, afinal. O cronograma inviabilizava que os dois acontecessem: a reunião de negocios estava marcada para as 10 da manhã. O outro compromisso não tinha hora, mas certamente lhe tomaria toda a manhã."Ela não acorda cedo", pensou. Conhecia-a de longa data mas só no dito final de semana perceberam o encaixe perfeito dos corpos. "Vai ficar puta se eu acordá-la cedo". Estabeleceu uma estratégia que teoricamente viabilizaria o compromisso de negocios caso o impulsivo não se concretizasse: ligaria para ela às 9 da manhã.

Que merda acordar cedo. Ainda eram 6h50. "Deus ajuda quem cedo madruga" o caralho! Deus faz é que o tempo passe mais lentamente pela manhã, insuficientemente rápido para o trabalho da tarde obrigando-o a extender pelo começo da noite para, afinal, fazê-la passar mais rápido que os finados Concordes. Acendeu um cigarro, o primeiro do dia. Calculou: "Um cigarro, cinco minutos, depois penso no que fazer." Jogou-se no puff da sala e passou a admirar a árvore que separava a vista do apartamento da Rua Barão de Iguape. A ilusão de uma natureza no meio do centro de São Paulo, cujo sentido da audição tornava imperceptível de que, sim, ele morava no olho do furacão, com seus ônibus, caminhões e carros buzinando para o nada.

Sete horas da manhã. A essa altura já tinha fumado dois cigarros e preparado um café instantâneo, e enquanto isso, olhou para os copos na pia -- deveria tê-los lavado na noite anterior, e ouviu o barulho vindo da janela do quarto que prenunciava chuva. Não satisfeito, tão logo fez o café, foi para o quarto e viu que estava errado: a manhã estava ensolarada e a árvore em frente à janela balançava com a brisa vinda do ir e vir dos ônibus na Rua Conselheiro Furtado. Achava que conhecia os sons da natureza e que poderia prever o tempo de São Paulo, já que conhecia a cidade em todos os seus nuances. Percebeu que era prepotência de sua mente. A natureza é imprevisível, seja na Amazônia, seja em meio ao concreto.

Teria que conter-se até as 9 horas. Se ela não atendesse, resolveria a tempo ir para a reunião. Já se estivesse desperta -- e disposta, entregaria-se ao improvável. Einstein disse que Deus não joga dados. "Eu não sou Deus. Eu jogo.". Naquela noite teve um sonho lúcido de que ligou para ela e, tão logo ela atendeu ele despertou. Procurou pelo celular na sua mão mas na verdade estava é agarrado ao travesseiro. Esse sonho que não cede à vigília não descansa o corpo, deixa-o acordado e controla-o da mesma forma que a mente desperta o faria, todavia sem força suficiente para fazê-lo andar pela casa e distinguir um travesseiro de um celular.

Mesmo acordado, manteve-se inerte na cama e imaginou um desfecho favorável para ele: ela acordava sonolenta. Ele anunciou que estava indo encontrá-la. "Cedo assim?". "Cedo assim, preciso vê-la" -- "Preciso ver o que há além do sexo", pensou o que pensaria no meio da fala. Lembrou-se de tudo isso enquanto lavava os copos na pia, torcendo para que essa atividade levasse mais que meia hora. Em 20 minutos, estavam todos os copos limpos. "A padaria!", pensou. "A padaria vai me fazer passar o tempo e ainda vai me dar mais sustância que o Nescafé".

O elevador que às 6 da tarde demorava uns 10 minutos para chegar não tardou 3 para abrir as portas. "Puta que pariu!". Desceu, cumprimentou o porteiro da manhã e atravessou a rua.
-- Me vê um café puro e um pão na chapa? -- dirigiu-se ao balconista conhecido.
-- Expresso ou coado?
-- Expresso -- ganharia alguns minutos entre o triturar dos grãos e a infusão do café.
Quando seu pedido foi atendido percebeu que na televisão à pregada na parede em sua frente passava o “Bom dia São Paulo” ou algum outro noticiário qualquer. Assistiu sem qualquer atenção e, mesmo assim, os minutos passaram. 8h30 da manhã. Tempo ideal para colocar o terno, fazer a (mal)dita ligação e deixar o acaso decidir entre os dois compromissos.
Agora sim não se preocupou se o elevador viria rápido demais: sabia que o tempo de tomar um banho e colocar o terno preencheria a meia hora, e quem sabe, até ultrapassaria o horário que estabeleceu para si mesmo como o ideal. Genial. Abriu a porta do apartamento com um bom humor descomunal para quando ele acordava cedo demais. Jogou as roupas no chão do quarto e andou a passos lentos, nu, para o chuveiro. Seus banhos no geral eram rápidos: concentrava-se nas axilas, no pubis, nos pés e passava shampoo e condicionador no cabelo. 
Dessa vez, resolveu esfregar o corpo todo com uma bucha natural que, como não tinha sido usada há mais de uma semana, já estava tão dura quanto uma pedra de raspar calos. Tacou-lhe sabonete e esfregou todo o corpo, dos pés até o couro cabeludo. Depois do shampoo, deu alguns minutos para o condicionador agir e depois deu uma última enxaguada. Secou-se mas ainda assim deixou um rastro de água entre o banheiro e o quarto.
Nem olhou para o relógio. Sacou a camisa, a calça social e o blazer -- nunca usava roupas íntimas, passou o anti-transpirante e vestiu as roupas como se preparando-se para um ritual. Tudo pronto, faltava a gravata, e teve que refazer o nó três vezes, quando de habitual acertava na primeira. Era perfeccionista: a ponta da gravata deveria ficar sobre o fecho do sinto. Na terceira tentativa conseguiu.
9h10. Ótimo. Hora de ligar e, caso ela não atendesse, seguir para o compromisso. Discou e, no terceiro toque, ela atendeu com sua voz sonolenta:

-- Isso é hora de ligar Xavier!
-- Desculpe -- nos velhos tempos ele nunca pediria desculpas -- mas precisava falar com você agora. Está em casa?
-- Claro que estou.
-- Na cama.
-- Óbvio. Que horas são?
-- Quase dez -- mentiu por sarcasmo.
-- Então, eu só acordo ao meio dia!
-- Mesmo assim. Decidi tomar um café da manhã com você na padaria de sua casa.
-- Você é louco?
-- Você me conhece. Já que você diz que não tem tempo, resolvi criar um tempo para te encontrar -- em seguida ele pensou, “estou fazendo tudo isso por causa de uma boa foda, puta merda”.
Surpresa e quase por um instinto, ela respondeu:
-- Tá bom, pode vir. Não precisa demorar nem vir rápido, assim eu posso dormir mais um pouco, mas assim que você ligar eu desço.
Já estava de terno e ligou para a cliente:
-- Dona Marta, infelizmente tive um imprevisto e terei de ir até a agência do Butantã para resolvê-lo. Podemos remarcar a reunião para amanhã no mesmo horário?
-- Claro, sem problemas. Hoje ficaria apertado mesmo para mim e não teria muito tempo para ficar.
-- Ótimo! Então agendamos para amanhã, quinta-feira dia dez, às dez da manhã -- achou engraçada a combinação entre os números.
-- Tá certo então. Um abraço! Obrigada por ligar.
-- Outro.
Sentiu pela primeira vez no dia uma corrente de alívio percorrer seu corpo. Tanto o impulso quanto o ato pensado tinham dado certo. Considerou um prenúncio de que sabe-se lá o que faria com ela na padaria daria certo. Com essa sensação procurou a sua chave por algum tempo e, de posse dela, dirigiu-se para a sala.

Acordou pontualmente às 9 horas da manhã, jogado no puff da sala, com o as cinzas do cigarro mostrando que ele o tinha esquecido no cinzeiro. Ficou aturdido por alguns instantes, mas afinal, eram nove horas. "O acaso me serviu de despertador", pensou, mas em seguida lembrou-se de ter aprendido técnicas para condicionar a mente a acertar o compasso do relógio biológico com o mecânico de forma a não depender de qualquer estímulo externo para acordar pontualmente. Tomou em mãos o celular que ainda estava ao seu lado no puff. Foi menos impulsivo do que planejou, resolveu mandar um sms avisando que ligaria cedo e talvez assim o barulho já a despertasse antes da ligação e ela não fosse pega tão de surpresa.

Ligou. Um toque. Dois toques. Três toques. Quatro toques. Cinco toques. Caixa postal. Tentaria de novo? “Nem fudendo!”. Ao contrário, ligou para Dona Marta e disse que chegaria uns quinze minutos atrasado para a reunião.

-- Tudo bem, com o congestionamento não chegaria na hora, talvez eu mesma chegue mais atrasada.
Não sabia se tinha ganhado ou perdido o jogo de dados com Deus. O dia estava só começando, e a essa altura, já lhe colocava dois desafios: ter sucesso na negociação e nunca mais ligar para a garota. 

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