o grito

Curta crônica de uma paixão natimorta

Hoje tive um sonho...
Nove e meia da noite eu estava sentado em uma das muretas do metrô República. Marquei com ela as nove -- mas quem se importa? Encontrei-a linda, tão linda como nunca lembrava. Também, não tinha muito como lembrar, só a tinha visto uma única vez.
Devo meu tom estupefato aos meus tolos sentimentos. Era para ser só mais uma, não para ser única. Dispensaria a ela o tratamento padrão: bar, balada e mi casa. O ciclo de uma noite "perfeita" e bem resolvida padrão. Padrão porque se repete, perfeita porque sai como o planejado.
A noite é como um cavalo, mas você nunca sabe quem ele é. Às vezes, dócil, caminha com obediência pelas estradas que guiamos, só parando nos pastos que permitimos. Outras, completamente selvagem, arranca sua sela com furor e nos joga ao chão, fazendo acompanharem-no a pé ou tentando recuperar a montaria. Assim, como a segunda, foi aquela noite.

O sarau foi sempre o mesmo, naquilo que outrora foi um teatro grego e hoje, como os originais, está em ruinas. Garoava. Enfrentei o frio com despeito, sem imaginar que seria pego de surpresa em uma armadilha que ela escondeu dentro dos olhos. Li e reli "Metade", de Oswaldo, mas tendo minha mente fixa no meu tão preferido soneto de Vinicius. Encenei minha morte, sem saber o que ali nasceria.
Regada a vinho, o resto da noite vira uma série de lembranças desconexas e vultuosas. Como podem acontecer coisas significativas durante um porre? Penso que as coisas que acontecem durante a embriaguez deveriam cessar junto com ela. No geral, essa é a regra. Burlá-la é como querer mudar um planeta do lugar e querer que o sistema se equilibre no automático. Impossível.
Quando dei por mim, já sentia. Dormi como nunca dormi, crente que esse devaneio se diluiria no ar como um grão de areia desaparece no Atacama. Acordei e ele ainda estava lá. Tomei café e ele ainda estava lá. Saí de casa e ele ainda estava lá. Voltei pra casa, e ele ainda estava lá. Maldito sentimento!
Há algum problema em estar apaixonado? Não, não há. Mas se essa noite nunca aconteceu, se nunca estive no metrô República e se o teatro grego estava vazio naquela noite, há. A armadilha estava em meus olhos, cerrados no leito, fingindo dormir. Se sonhavam, não dormiam, me enganavam.
Então me calo. Posso ser correspondido por quem não existe? Posso me apaixonar por quem nunca me tocou? Que posso esperar de uma paixão natimorta?

1 comentários:

Letícia disse...

Lembra um conto teu de um tempo atrás.
:)

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