O Outro e o Sabotador

Dizem que o outro é legal. Eu não o conheço, só ouvi falar. Quando acordo no dia seguinte ele já foi embora. Já o vi por foto, é parecido comigo. As feições são parecidas, ora ele parece mais velho que eu, ora mais novo. Às vezes o cara arranja briga, muitas delas o cara é rico. Minha conta bancária é quem paga a conta, mas dane-se. O outro não costuma pedir licença para usar meu cartão. Sabe minha senha e, se usassem de biometria para garantir acesso ao sueldo, creio que isso também não seria problema para ele.
Os outros conhecem o outro melhor que eu. Ou pensam que conhecem. Ninguém conhece o outro, creio, já que ele não existe. Se Freud estava certo em dividir-nos em ego, superego e id, eu chamaria o outro de superid. Um animal. Mantê-lo enjaulado deve deixá-lo furioso, e quanto mais furioso, mais estrago ele faz quando consegue escapar. A solução seria deixá-lo solto o tempo todo, então? Não, não sei, a solução seria usar o tal ego controlador de Freud para apaziguá-lo, mas vou ter que consultar o médico austríaco em uma sessão de mesa branca sobre o que fazer no caso do id ter dimensões de superid. Vai entender.
O outro às vezes faz amigos dentre os meus amigos, muitas outras vezes estabelece grandes relacionamentos em segundos que duram no máximo uma noite. Talvez ele enxergue uma profundidade que eu mesmo não enxergue nas coisas corriqueiras. Ou talvez fechemos nossos olhos a essa profundidade e deixemos passar grandes oportunidades de ser feliz. O outro deve ser feliz por esses breves momentos. Não sei. Nunca conversei com ele. Certamente ele dissertaria por horas e horas acerca da felicidade real se eu o indagasse sobre isso e eu encontraria certa familiaridade em suas palavras. Ou não, pode ser que se eu o fizesse essa pergunta ele simplesmente me desse uma cerveja e me dissesse "tome isso e não pense naquilo que não se pode racionalizar, mas deve-se sentir". O outro, penso que por sua natureza, prioriza a praxis à razão, o sentimento à elocubração, o impulso ao cálculo. Uma conversa com o outro poderia ser perigosa.
Já me disseram que o outro é um sabotador. Opa, peraí, fui eu quem disse isso. O outro muitas vezes disse coisas que não deveriam ser ditas para pessoas que não deveriam ouví-las, é verdade. O outro já gastou todo meu dinheiro e me fez ficar na pindaíba. O outro já magoou grandes amigos meus, para quem eu não tive nem coragem de pedir desculpas, e não adiantaria -- é pena. Melhor nem dizer o que o outro fez com algumas mulheres com quem me relacionei. Mas de certa forma, o outro também me mostrou que por mais que reprimamos certos aspectos de nós, coloquemos uma tampa na panela de pressão, não adianta, #essaporra de animal enjaulado sempre vai arranjar um jeito de sair. O outro, portanto, não é um sabotador. Ele é vítima e produto da sabotagem. E o sabotador sou eu.
Imaginemos quanto tempo duraria uma comunidade dos outros. Se os outros arranjassem uma forma de sair e se juntassem para viver juntos, tenderiam ao equilíbrio ou à destruição? Ao amor livre ou ao moralismo? À caretice ou à libertinagem? Discutiriam filosofia ou novela das oito? Eu tenho uma opinião formada com relação a isso, mas elocubremos. Já que nós não somos os outros, podemos elocubrar.
É pena que vivemos num mundo pequeno demais para um e outro. Uns entregam-se para o um e tem medo do outro. Outros viram o outro e matam o um. Tem gente que acha que não tem um outro, mas depara-se com ele toda noite, quando encosta sua cabeça no travesseiro. E o que faz desse outro menos real? Talvez, mais frustrante, mas não menos real. Eu prefiro a não frustração.
De qualquer forma, se os outros são tão perigosos assim, deveríamos colocar uma placa de alerta em nossos espelhos: "antes de entrar 'no mundo', verifique se o outro encontra-se parado nesse corpo". Vai que ele entra em movimento. Amanhã pode ser tarde demais.

1 comentários:

Pra Hoje! disse...

Particularmente não acho o OUTRO um sabotador ou um sabotado, ele apenas é uma escolha, que traz consequencias. Embora estas tais consequencias sempre lhe tragam coisas ruins, vale a diversão por vezes ou não, aliás são apenas escolhas.

Postar um comentário

(os comentários desse blog são moderados)

 
;