Balé de Marx e a Mulher Linda no Ônibus

Não posso dizer que não me canso de viver as experiências bizarras que vivo em São Paulo, pois que são cansativas elas são. Mas não deixo de achar intrigante as coisas que observo aqui e que certamente não veria nas pacatas cidades que conheci em Minas ou até mesmo em outros centros urbanos daqui ou do continente.

Embarquei no ônibus que pego diariamente para a faculdade e estava absorto em algum pensamento idiota -- os bons pensamentos não ocupam nossa mente durante grande parte do dia afinal, quando entrou uma mulher espetacular, daquelas que pararia o trânsito se o trânsito de São Paulo precisasse de espetáculos mulheris ou teatrais além dos políticos para ficar parado. Sei que a adjetivei pouco para traduzir o quanto ela era fantástica em seu vestido lilás, o que penso eu ser inútil fazer com qualquer verborragia que eu possa disparar nesse momento, mas eu fiquei de fato estupefato. O eco anterior talvez seja suficiente para resumir.
O transporte coletivo lotou, superlativando o sentido coletivo do coletivo, e logo estavam todos disputando espaços para pernas, braços, cabeça, ar, mochilas e suas próprias preocupações. Não, preocupações não tinham espaço. Pobre não pode se preocupar, só se conformar. A garota linda continuava no meio da multidão enlatada e saca um Karl Marx de uma mochila que não tinha visto enquanto olhava para sua espetacularidade. Devia cursar filosofia, hoje provavelmente tinha prova, porque eu vi mais gente com texto de Marx na mão -- todos sentados. Impossível que todos tiveram um surto coletivo de consciência e passaram a ler o barbudo de um dia pro outro, ontem ninguém tava lendo nada e aposto que se tiver greve vai todo mundo dizer que não tem nada a ver com isso.
Ouvi certa vez que ônibus vem do latim e quer dizer "para todos". Ali tinham muitos todos, e o cara estava indo rápido. Enquanto eu mal conseguia me segurar, a garota apoiou uma mão e o livro no balaústre do teto e começou a lê-lo, simples assim, no meio da multidão apertando. Na primeira freada brusca, quase caiu. Se reequilibrou, virou, apoiou o livro sobre o banco e continuou lendo. Parece que ficou desconfortável. Deu um giro, apoiou o livro no ar, segurou-se sabe-se lá onde, e seguiu impassívelmente cambaleando junto com o balanço do ônibus e Karl Marx na mão.
Um possível colega de faculdade que estava fazendo uma cola com letras miúdas desde que saímos do ponto de partida -- sei lá se para a mesma prova -- ofereceu lugar para ela sentar, vendo que o balé com o filósofo alemão tava difícil. Ela recusou. Continuou de pé. Mudou de posição, o livro não: seguiu aberto.
Certo ponto da Dutra ela desistiu e fechou o livro, mas chegando lá, eu não resisti e perguntei:
-- Quantas páginas você leu?
Ela abriu o livro tranquilamente:
-- Até a 25.
E ela era mesmo linda. Desci do ônibus e subi atrasado pra minha aula de francês.

(qualquer semelhança é mera coincidência)

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