Carnaval: Quem não tem panis, vai de circensis

Carnaval em Ouro Preto - Foto: TBD
O título dessa postagem não podia ser mais emblemático. Diz-se que as festanças de carnaval remontam à época grega, quando a sociedade "relaxava" seus ditames morais e entregava-se às festas, inclusive, liberando temporariamente os escravos
e cultuando à Baco da forma que melhor sabiam fazer (bebida, sexo e sacanagem). Não muito diferente do que se faz hoje. Já estive no carnaval de Ouro Preto, Rio de Janeiro e São Paulo e posso garantir que a festa assemelha-se muito ao que era feito na Grécia -- e, admito, já entreguei-me bastante a esse espírito.
Eu, em particular, não gosto de assistir desfiles de carros alegóricos tampouco me divirto, seja na arquibancada, seja pela televisão, vendo-os passar. É mais divertido para mim seguir um bloco ou participar do espírito orgiástico. Ontem, todavia, aconteceu algo interessante: estava em plena praça Benedito Calixto, com uma galera (até então) desconhecida, e fomos abordados por uma mulher (bêbada, é verdade) que veio para nos desejar "paz e perdão", agradecendo por nossa existência. Lindo. Mas diametralmente contrário ao espírito da festa.
Refleti a respeito. Ora, não precisaríamos de um período para "relaxar" nossos limites morais se fôssemos menos moralistas (ou hipócritas). Não seria necessário quatro dias ao ano para trazer à tona nossos desejos se lidássemos com eles -- e os supríssemos -- o tempo todo. Não seria necessário o carnaval para pedir perdão, para desejar paz, para tocar os outros e ser tocado fizéssemos isso o ano todo.
Isso tem um pouco a ver com o que escrevi há alguns dias atrás, as "Reflexões de um Depressivo". Foi um texto que me tocou, mesmo sendo meu. Tendo cada vez mais a pensar que é mais sensato ser sincero o tempo todo que reservar alguns dias para fazer isso durante o ano.
Não é só isso, todavia, que o carnaval tem em comum com seus primórdios. A sociedade nunca foi igualitária: alguns tem pão e, os que não tem, são manipulados para pensar que podem tê-lo. Assim foi em Roma: a sociedade miserável recebia migalhas e era agraciada com duelos de gladiadores para esquecer sua própria miséria. Panis et Circensis. Aos escravos gregos era facultado ter alguns dias de igualdade com seus senhores. À sociedade cristã (e católica) da antiguidade, oprimida pela moral religiosa que deixava-os "na linha" para não se revoltar contra seus reis (escolhidos por Deus) e contra o Papa (representante de Deus, tal qual disse Paulo) e pagar direitinho seus tributos através do dízimo, eram permitidos alguns dias para largar essa moral, precedidos por um período de "purificação" onde deveria se evitar a carne, o sexo e o álcool. Desconheço o paralelo disso no judaísmo e no islamismo, mas no bramanismo, religião extremamente opressora onde só os Brâmanes poderiam alcançar a iluminação e as castas inferiores deveriam submeter-se à eles, certamente devia existir um dia onde poderiam extravasar seus sentimentos de revolta travestidos do desejo de entregar-se aos prazeres da carne -- se não houvesse isso, o regime era ainda mais opressor do que eu imagino.
Isso me leva a pensar que, há muitos e muitos anos, o Carnaval é mais que o símbolo do prazer: é a evidência da opressão. Tudo o que é reprimido, seja os desejos, seja a miséria, converte-se em "desejos da carne" para que o povo se esqueça das necessidades da carne. Mais que isso, a mulher de ontem me ensinou, há ainda uma privação da expressão das necessidades do espírito, de se ligar uns aos outros e desfrutar da real existência humana. É claro que isso é extremamente perigoso para as classes dominantes: uma sociedade unida, tanto espiritualmente (e veja aqui que estou usando o sentido filosófico de espírito, diferente do conceito religioso), quanto políticamente, pode revoltar-se contra sua própria miséria. Por isso, estabelece-se alguns dias de Circensis: para que se esqueça do "Pão Nosso de Cada Dia" que falta na mesa.
Carros alegóricos desfilando na avenida preparados pelas comunidades que esperam ano a ano para terem seus 15 minutos de glória, enquanto passam os outros 364 dias (ou 365, se o ano for bissexto) esquecidos pelo governo. Cerveja liberada para que ninguém pense naquilo que está por vir pelo resto do ano. Sexo sem pudores para que se esqueçam que podem fazê-lo quando e como quiserem, sem que o Estado possa arbitrar sobre isso -- lembrando da proibição dos abortos, dos casamentos homossexuais, dentre outras proibições que não concernem ao Estado decidir.
Falta panis. Falta felicidade. Falta auto-realização (irônicamente, quem me convidou para ir ao bloco ontem foi uma amiga chamada Ananda, que em sânscrito quer dizer justamente isso). Falta liberdade de fato. Falta bem estar. Falta espaço para o amor.
Eu não quero 4 dias para me realizar de mentira. Quero 365 para ser feliz de fato. Isso só é possível se todos adquirirem consciência de que isso é possível. A pergunta que não cala é: se há mais de 2.000 anos o povo recebe essa dose de circo para se enganar, será que um dia será possível acabar com essa alienação?
Acredito, sim, que uma sociedade melhor é possível. Acredito na consciência. Acredito na existência humana plena, ainda que demore. Mas para que tudo isso aconteça, não sou só eu que deve acreditar nisso. "Sonho que se sonha só é só um sonho, [...] mas sonho que se sonha junto é realidade", disse o mestre Raul. Isso não é crença religiosa: é verdade. Se todos nos empregarmos a construir essa sociedade, ela vai existir, a despeito da opressão milenar.
Vou me dedicar a isso enquanto durar minha existência. Espero (e creio) que não seja o único. Que o carnaval não seja um baile de máscaras e que possamos viver sem elas o ano todo, ano após ano. Isso faz bem para o espírito, para a existência e para a sociedade. Vamos entender que tantos desejos reprimidos provém de alguém que os reprime e faz-nos acreditar que somos nós mesmos que o fazemos.
Vamos celebrar sim. O ano todo. A vida toda. Vamos fazer com que as próximas gerações possam celebrar como nós. Mas celebremos o que realmente é necessário e possível: a inexistência da opressão. Assim podemos exercer as nossas vontades. Assim, seremos senhores de nós mesmos, e deixaremos de ser uma panela de pressão. Sem pressão, sem ilusão, extravasar não será necessário: nossos necessidades serão supridas pelo exercício de nossos próprios desejos. E como diria Crowley, "todo homem e toda mulher é uma estrela", e como tal, nossas órbitas convergem, mas não devem se chocar. Tomemos isso como um ensinamento moral: é possível sim exercer nossa vontade sem barbárie. É possível construir uma sociedade melhor, desde que ela seja igualitária.

0 comentários:

Postar um comentário

(os comentários desse blog são moderados)

 
;