O sucesso sob uma perspectiva iluminada

Naquela quarta feira à noite o teatro da livraria Cultura, no Shopping Salvador, estava bem cheio. Era meado do mês de março, nesse ano, período imediatamente pós carnaval na capital baiana. Aconteceria ali uma palestra sobre Budismo, já que nem tudo nessa cidade se refere ao Axé, como aspecto religioso ou ritmo musical; sem, contudo, tirar-lhes o lugar de destaque na cultura, nem, de modo algum, deplorar-lhes a existência.
O palestrante, Jigme Tronge Rinpochê, é um eminente Lama budista. Rinpochê é título só concedido a professores do Dharma, reconhecidos como mestres de grande sabedoria. A palavra Dharma, nesse caso, refere-se ao conjunto de ensinamentos budistas.
É de praxe quando da visita de um Lama a uma cidade, organizar-se como primeiro evento uma palestra aberta, que tem como objetivo apresentar o professor àqueles que ainda não o conhecem, ou oferecer a um curioso público a oportunidade de um contato inicial com um tema, professor e filosofia ainda pouco conhecidos, ou, talvez para alguns, até exóticos.
Alguns rostos bem conhecidos do ambiente budista em Salvador, e uma maioria de interessados que, ao menos a princípio, ficarão pelas bordas de uma ânfora bastante funda, podiam ser vistos na lanchonete da livraria, desde antes de começar a palestra. No dia seguinte àquele, quando o Lama daria ensinamentos mais reservados e profundos, sobre outro tema, só estariam presentes aqueles que já valorizam esse conhecimento a ponto de deixarem suas atividades habituais, num dia de semana normal, para passarem o dia sentados em almofadas e levitando em insights luminosos.
O tema da palestra era bastante atraente: “O Sucesso na Perspectiva Budista”. Nada mais adequado para atrair o grande público dos dias atuais, afinal, quem não quer o sucesso? A palavra “sucesso” tem sido muito utilizada com o sentido de “êxito” ou “acontecimento feliz”. Ela gera associações grandiosas, levando a pensamentos que giram em torno de artistas, fama, dinheiro e objetos luxuosos, seja ou não carnaval. Mas, afinal, o que é o sucesso?
Com a grande habilidade que os Lamas possuem em transitar entre o geral e o específico, em viajar entre a periferia e o centro, entre o diminuto e o amplo, com uma agudeza de discernimento incrível, Jigme Rinpochê nos trouxe de uma palavra que poderia estar ligada apenas a representações materiais, até os questionamentos fundamentais da vida humana.
Ao referir-se ao nosso senso de identidade, e aos julgamentos e críticas que estabelecemos à partir daí para os outros, Rinpochê naturalmente leva-nos à indagação velha conhecida daqueles que se interessam por temas, digamos, mais metafísicos, que é “quem sou eu?”. Essa pergunta, ultimamente quase foi substituída pela afirmativa “penso, logo, existo”, de Descartes, essa nunca descartada por todas as mídias atuais. Conquanto de difícil resposta, a questão “quem sou eu?” permanece válida. Grandes sistemas de meditação e estudos esotéricos já foram construídos sobre essa indagação. Embora Rinpochê não tenha feito essa pergunta, suas palavras nos levaram a constatar que nosso senso de identidade desemboca inevitavelmente nos nossos desejos, no nosso querer, o que nos leva, também inevitavelmente, às experiências de sucesso e fracasso de acordo com a realização ou frustração desses desejos.
Não estou reproduzindo a palestra de Rinpochê, algo impossível, mas tão somente comentando as impressões e pensamentos que se produziram em mim à partir daquela palestra. Seria também desafio incalculável transcrever todas as reflexões feitas em torno do porque obtemos ou não obtemos o que desejamos, e de como o processo de desenvolver a atenção e a consciência pode mudar substancialmente a qualidade dos nossos hábitos e escolhas, o que nos leva a resultados de maior contentamento.
Essa mesma atenção e consciência pode levar-nos a uma mudança profunda no nosso entendimento do que é o sucesso, já que observamos que os objetos e fatos não podem representar sucesso de ‘per si’ , mas dependem do julgamento da nossa mente para tal. Entender como produzimos o sofrimento em nossas vidas e como podemos desenvolver maior contentamento é tarefa para uma vida inteira ou mais.
O passo seguinte, mas não necessariamente separado dos outros, ou em rígida sequência, é perguntarmo-nos o que acontece quando e se conseguirmos desmantelar o nosso julgamento. Não necessariamente abandoná-lo, mas desmantelá-lo. Esse hábito de estabelecermos juízos de valor, muitas vezes rígidos, à partir das aparências, para qualificarmos pessoas e experiências, sem perceber-lhes a natureza essencial. Obter sucesso nesse item, como em todos os outros abordados, requer um diligente trabalho interno do qual só podemos ter uma idéia, como resultado de uma pequena, e muito bem sucedida, palestra sobre o Sucesso.
Na saída da livraria eu ainda refletia sobre as novas acepções que a palavra “sucesso” poderia ter adquirido para quem ouviu o Rinpochê naquela noite.
No dia seguinte Rinpochê proporcionaria, a mim e a tantos quanto estavam no Centro Budista Norbu Ling, um grande momento de vivência no Dharma, que poderíamos chamar de momento de verdadeiro sucesso, se for possível para quem lê supor novos significados para essa palavra.



Autor convidado:

Ana Liese Leal mora em Salvador e é terapeuta familiar sistêmica, além de praticante budista.
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