Suplemento da Viagem de Bougainville - Adeuses do Ancião

Enquanto medito sobre o próximo texto a escrever, cito ipsis litera Diderot, em Suplemento da Viagem de Bougainville. Vale a pena a leitura para estimular a meditação alheia.

Era pai de numerosa família. A chegada dos europeus, deixou cair olhares de desdém sobre eles, sem expressar espanto, nem medo, nem curiosidade. Abordaram-no; ele volveu-lhes as costas, retirou-se para sua cabana. Seu silêncio e seu cuidado revelavam muito bem seu pensamento: gemia, no íntimo, sobre os belos dias de seu país, eclipsados. À partida de Bougainville, quando os habitantes acorriam em multidão à margem, agarravam-se ao vestuário dele, apertavam seus camaradas entre os braços, e choravam, o velho avançou com ar severo e disse:
“Chorai, infelizes taitianos! chorai; mas que seja pela chegada, e não pela partida desses homens ambiciosos e malvados: um dia, vós os conhecereis melhor. Um dia, voltarão, com o pedaço de madeira que vedes preso na cintura deste, em uma mão, e com o ferro que pende à ilharga daquele, em outra, para vos encadear, vos degolar, ou vos sujeitar às suas extravagâncias e a seus vícios; um dia servireis às ordens deles, tão corrompidos, tão vis, tão infelizes como eles. Mas eu me consolo; toco ao fim de minha carreira; e a calamidade que vos anuncio, eu não a verei. Ó taitianos! meus amigos! haveria um meio de escapardes a um funesto porvir; mas preferiria antes morrer a vô-lo aconselhar. Que eles se afastem, e que vivam”.
Depois, dirigindo-se a Bougainville, acrescentou: “E tu, chefe dos bandidos que te obedecem, afasta prontamente teu navio de nossa costa: nós somos inocentes, nós somos felizes; e tu só podes prejudicar nossa felicidade. Nós seguimos o puro instinto da natureza; e tu tentaste expungir de nossas almas seu caráter. Aqui tudo é de todos; e tu nos pregaste não sei que distinção entre o teu e o meu. Nossas filhas e nossas mulheres nos são comuns; tu partilhaste esse privilégio conosco; e tu vieste acender nelas furores desconhecidos. Elas se tornaram loucas em teus braços; e tu te tornaste feroz entre os delas. Elas começaram a odiar-se; vós vos degolastes por elas; e elas voltaram a nós manchadas de vosso sangue. Nós somos livres; e eis que tu fincaste em nosso solo o título de nossa futura escravidão. Tu não és nem deus, nem demônio: quem és então, para fazer escravos? Oru! tu que entendes a língua desses homens aí, dize a todos nós, como disseste a mim, o que eles escreveram nesta lâmina de metal:‘Este país é nosso.’ Este país é teu! E por quê? Porque puseste o pé nele? Se um taitiano desembarcasse um dia em vossas costas, e se gravasse numa de vossas pedras ou na casca de uma de vossas árvores: ‘Este país é dos habitantes do Taiti’, o que acharias? Tu és o mais forte! E o que tem isso? Quando te tiraram uma das desprezíveis bagatelas de que tua embarcação está cheia, bradaste, tu vingaste; e no mesmo instante projetaste, no fundo de teu coração, o roubo de todo um país. Tu não és escravo: prefererias a morte a sê-lo, e queres nos assujeitar. Crês portanto que o taitiano não sabe defender sua liberdade e morrer? Aquele de quem queres te apoderar como de um bruto, o taitiano, é teu irmão. Vós sois dois filhos da natureza; que direito tens tu sobre ele que ele não tenha sobre ti? Tu vieste; nós nos atiramos sobre tua pessoa? Pilhamos o teu navio? Nós te prendemos e te expusemos às flechas de nossos inimigos? Nós te associamos em nossos campos ao trabalho de nossos animais? Nós respeitamos nossa imagem em ti. Deixa-nos os nossos costumes; são mais sábios e mais honestos que os teus; nós não queremos trocar o que chamas nossa ignorância por tuas inúteis luzes. Tudo o que nos é necessário e bom, nós o possuímos. Somos nós dignos de desprezo, porque não soubemos criar para nós necessidades supérfluas? Quando temos fome, temos o que comer; quando temos frio, temos com que nos vestir. Tu entraste em nossas cabanas, o que faltava nelas, em tua opinião? Persegue até onde quiseres isso que denominas comodidades da vida; mas permite a seres sensatos que se detenham, quando não teriam a obter, da continuação de seus penosos esforços, senão bens imaginários. Se nos persuades a transpor o estreito limite da necessidade, quando findaremos de trabalhar? Quando fruiremos? Nós tornamos a soma de nossas fadigas anuais e diárias menor possível, porque nada nos parece preferível ao repouso. Vai a teu país te agitar, te atormentar quanto quiseres; deixa-nos descansar: não nos metas na cabeça nem tuas necessidades factícias, nem tuas virtudes quiméricas. Observa esses homens; vê como são eretos, sadios e robustos.Observa essas mulheres; vê como são eretas, sadias, frescas e belas. Toma este arco, é o meu; chama em tua ajuda um, dois, três, quatro de teus camaradas, e tenta distendê-lo. Eu o distendo sozinho. Eu lavro a terra; escalo a montanha; atravesso a floresta; percorro uma légua da planície em menos de uma hora.
Teus jovens companheiros tiveram dificuldade em me acompanhar; e eu tenho oitenta anos passados."

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